Quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor?

Artilheiro Colaborador: Gabriel Deslandes

Este enredo é um protesto. Protesto a esta grande maldade que estão fazendo com a nossa terra, com a nossa gente, com o nosso Brasil. Maldade desequilibrarem totalmente um país que tem, em sua geografia, a forma de um grande coração. Invertido, desequilibrado, de cabeça para baixo, mostrará os contornos de uma enorme bunda e uma bunda do tamanho do Brasil tem muita sujeira em seus intestinos para ser expelida. Somente as águas das Bacias do Amazonas e do Prata poderão lavar tantos excrementos. Ou, então, a grande energia do nosso povo quando ele tiver consciência de sua força e de seu valor. Por enquanto, somos ainda o gigante que acabou de acordar e está levando tanta porrada, está sendo tão sacaneado que, de repente, fica inerte. É preciso que comecemos a reagir e é a obrigação de todos nós participarmos deste trabalho. Cada um deve agir à sua maneira. No nosso caso, sabemos fazer carnaval: é o nosso ofício. E que seja através dele que a gente proteste. Então lançamos o grito: ratos e urubus, larguem a minha fantasia!

Como todo bom buarqueano de senso crítico apurado, decidi aproveitar esta rara oportunidade para abordar um “causo” famosíssimo entre os sambistas de plantão, porém quase desconhecido pela nata da intelectualidade juvenil, e que revirou o estômago de muito brasileiro no carnaval de 1989. Aposto um doce que alguns dos senhores com certeza já ouviram, ainda que vagamente em algum lugar qualquer, o seguinte nome: Joãosinho Trinta (é com S mesmo, assim como BraSil, e não com Z).

Em resumo, trata-se de um maranhense baixinho, magrelo e de língua presa, nascido em família humilde, que veio para o Rio de Janeiro trabalhar como escriturário, decidiu estudar balé, tornou-se cenógrafo do Teatro Municipal e acabou sendo convidado, em 1964, por Arlindo Rodrigues, figurinista do Salgueiro, para ajudá-lo a confeccionar algumas alegorias do carnaval seguinte. Resultado: a demissão, em 1972, de Arlindo em substituição ao próprio Joãosinho. Defini-lo assim é ser simplista, mas não é assim que a historia termina.

Aliás, o sujeito era um pé-quente: logo de cara, levantou um bicampeonato pela escola. Até que, em 1976, por forças ocultas, João é “levado” pelo Sr.º Anísio Abraão David, o poderoso chefão do jogo do bicho da Baixada, a ser carnavalesco da então modesta Beija-Flor de Nilópolis. E que fim deu? Com os bolsos cheios, a Beija-Flor fez o desfile mais luxuoso e requintado da historia do carnaval e foi campeã, dando uma reviravolta em toda a estrutura dos desfiles das escolas de samba e tornando o samba no pé um mero apêndice em um espetáculo visual de plumas, paetês e lantejoulas. Quando questionado a respeito desse trabalho, soltou sua mais famosa frase: Pobre gosta de luxo! Quem gosta de miséria é intelectual… Os puritanos ficaram furiosos. Enfim, este show de monotonia o qual hoje é televisionado durante as madrugadas de cada carnaval é a diluição da diluição da diluição daquilo que o João criou em 1976 na Beija-Flor.

Sendo assim, durante toda a sua trajetória como carnavalesco, Joãosinho foi atacado intensamente pelo fato de trazer a estética acadêmica aos desfiles de escolas de samba, manifestação popular até então “pura” e “unicamente folclórica”. Começou a chover críticas impiedosas a seu trabalho e João passou a servir de bode expiatório para toda e qualquer modificação ocorrida no carnaval carioca, acusado de desfigurar por completo as verdadeiras raízes do samba. Por mais que João fosse, de fato, um artista requintado, o exagero dos mais tradicionalistas era absurdo. Há quem o incriminasse até de utilizar ouro, prata e diamantes na confecção de suas fantasias, o que, diga-se de passagem, não faz sentido algum.

De qualquer maneira, eis que chegamos onde deveríamos chegar. Depois de engolir tantos sapos, para o desfile de 1989, o enredo da Beija-Flor seria uma grande resposta a todas essas heresias. O tema se chamara Ratos e urubus, larguem a minha fantasia, o qual seria, em síntese, uma crítica escrachada não só à luxúria do povo brasileiro, como também uma denúncia radical à sujeira e à miséria físicas e, principalmente, morais presentes em todas as camadas da sociedade. Seria uma imensa exposição carnavalizada daquilo que representa o lixo do luxo e o luxo do lixo. Sob o peso de tamanha ousadia, não haveria meio-termo: ou a Beija-Flor sagrar-se-ia autora de um momento extraordinário, ou fracassaria completamente.

Poucas semanas antes do carnaval, a Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, então administrada pelo arcebispo Dom Eugênio Sales, toma ciência que Joãosinho traria, para a Marquês de Sapucaí, o abre-alas da escola com uma escultura do Cristo Redentor caracterizado como um mendigo. De forma imediata, a arquidiocese brigou na Justiça pela proibição completa da imagem. A Igreja Católica venceu e Joãosinho foi obrigado a esconder a alegoria. O nervosismo se alastrou pela agremiação.

É interessante levarmos em consideração que em menos de um ano ocorreu o decreto e a promulgação da chamada “Constituição Cidadã” pela Assembleia Constituinte, erradicando de vez a censura da ditadura militar no Brasil. A Justiça, lamentavelmente, se deixou levar por uma súplica inquisicional e acobertou uma decisão mirabolante de um órgão religioso que pensa que um boneco de cinco metros de altura é uma representação fiel a seu Messias e que possua, de fato, os mesmos poderes psíquicos que Ele. É inacreditável que, mesmo passados mais de mil anos, esse tipo de ideologia ainda seja influente.

Voltando ao assunto, momentos antes do desfile, o carnavalesco não quis deixar barato e procurou algum método para colocar o Cristo Mendigo na avenida de qualquer maneira. Como em um estalo, a diretoria sugeriu cobrir a imagem com uma rústica lona preta e pôr em seus braços uma faixa branca com uma frase tão forte como a escultura: Mesmo proibido, olhai por nós!

O início do desfile foi, sem dúvida, a imagem mais impactante da história do carnaval carioca. Todos aqueles que tanto criticaram João por não saber trabalhar com um orçamento reduzido calaram-se. Tratava-se de uma imensa ala de mendigos, todos vestidos com farrapos retirados do próprio lixo, ladeando o abre-alas envolto em sucatas com o Cristo proibido. Acredito que ninguém jamais imaginaria assistir à suntuosa Beija-Flor de Nilópolis trajada com estopa e trapos velhos. Tamanho choque provocado pelo conjunto da escola foi suficiente para fazer todas as arquibancadas virem abaixo.

A segunda alegoria, denominada Convite, trazia as seguintes inscrições: Mendigo, desocupados, pivetes, meretrizes, profetas, esfomeados e povo da rua. Tirem dos lixos deste imenso país os restos dos luxos… Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué! A partir deste momento, os excluídos carnavalizados seguiram a proposta da escola e saíram para revirar os entulhos em busca das “coisas que brilham”. Um detalhe a ser salientado é que cerca de 500 espectadores que se amontoavam no Viaduto São Sebastião, ao lado da Marquês e Sapucaí, arrobaram os portões dos setores 7 e 9 do Sambódromo e foram preenchendo os espaços vagos nas arquibancadas. Outra observação interessante é o fato de que toda a diretoria da Beija-Flor, inclusive o carnavalesco, desfilou com um uniforme alaranjado propositalmente semelhante à roupa dos garis da COMLURB, a companhia de limpeza do Rio

Após uma abertura histórica, o segundo setor do desfile passou a retratar o luxo acerbado da aristocracia medieval através de fantasias multicoloridas. Despontaram críticas rígidas à luxúria da Igreja Católica, a mesma instituição que interveio no trabalho do João e que há séculos está afundada em um mar de hipocrisia, na qual os altos membros do clero vivem adornados no vil metal e têm suas catedrais cravejadas das pedras preciosas obtidas com os dízimos de seus fiéis. Não foram esquecidos os quatro cavaleiros do Apocalipse, cercados por arames farpados e tanques de guerra cenográficos, em representação ao lixo da guerra. O setor dedicado ao lixo do sexo trouxe uma aglomeração de loucos e prostitutas deleitados sobre uma sauna romana em um tempo em que a promiscuidade já se tornara algo usual e inquestionável. Com figurinos preto-e-brancos feitos de papéis de jornais, a escola também surpreendeu na crítica à imprensa marrom, acusada de sensacionalismo e de idolatrar acontecimentos negativos. Como não poderia faltar, eis que surge o setor do lixo da política, inteiramente vestido de verde e amarelo, com direito a um teatro de revista no Planalto Central e uma réplica perfeita do Senado Federal, seguido de referências ao lixo dos brinquedos, em uma menção ao excesso de violência nos brinquedos atuais, e ao lixo da feira, onde desfilaram belissimamente as baianas da escola, protestando contra o número absurdo de alimentos que são desperdiçados em um país onde ainda há pessoas vítimas da fome. O desfile foi encerrado pelo irreverente carro O banquete dos mendigos, composto pelos restos de comida do Bal Basqué e repleto de Exus e pombas-gira. Com uma bateria de atuação espetacular e um samba-enredo envolvente, foi o fim de um desfile mágico, um momento apoteótico do carnaval. Uma apresentação emocionante, única, vista por muitos como a melhor da história.

A Beija-Flor foi notícia em todos os cantos do Brasil e Joãosinho Trinta fez merecer a todos o título de “Mago do povo”. Todas as escolas reconheciam que a probabilidade do campeonato de 1989 ir para Nilópolis era imensa. A agremiação recebeu o Estandarte de Ouro de melhor escola e de melhor enredo. Joãosinho Trinta recebeu o de personalidade do ano. Era um título quase garantido, um carnaval que todos saberiam que entraria para a história, porém quiseram os jurados que não fosse assim. No final da apuração, a Beija-Flor e a Imperatriz Leopoldinense acabaram empatadas em primeiro lugar e, pelo critério de desempate, as três notas 9, atribuídas à escola de Nilópolis, voltaram a vigorar no somatório final. Foi um vice-campeonato extremamente doloroso, que fez todo Brasil chorar junto a Joãosinho Trinta.

Até hoje, os nilopolitanos ainda se revoltam ao relembrar o carnaval de 1989. No desfile das campeãs, o carnavalesco trouxe um contingente de mendigos maior que no desfile oficial. João ainda trouxe três “Judas”, representando os jurados de conjunto, samba-enredo e evolução que tiraram pontos fundamentais para a escola. Porém o que mais marcou aquele sábado das campeãs foi o fato de, em meio ao desfile, os componentes, atendendo ao pedido das arquibancadas, terem retirado por conta própria o plástico preto que cobria o Cristo Mendigo.

Uma escola de samba pode perfeitamente investir bilhões de dólares em seu visual de desfile, todavia nem todo dinheiro do mundo é capaz de destoar os 80 minutos de quimera de um brasileiro que passou por dificuldades durante um ano inteiro e aguardava ansiosamente “para fazer a fantasia de rei, de pirata e jardineira”, como já apregoaram Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Trata-se de valores completamente metafísicos, imateriais, os quais nunca poderiam ser destoados por ninguém e era justamente nisto em que trabalho de João Trinta se embasara. O próprio sempre se declarou a respeito:

As jóias de uma escola de samba são falsas, porém muito mais verdadeiras, porque têm implicações mágicas. Quando uma empregada doméstica se veste de Cinderela, de nobre, ela faz parte da nobreza medieval, está com as jóias mais autênticas, porque são as da imaginação, do prazer que ela está sentindo. Se me deixassem, eu estava fazendo os maiores enredos, as coisas mais sérias estariam sendo colocadas na avenida, porque é o nosso espírito, é onde a nossa cultura flui através dessa brincadeira. Só reclamam dos carros alegóricos as pessoas que vivem neles, em edifícios de apartamentos. O povo que vive em casebre, em rua de lama, no aperto, quer coisas grandes, procura essa outra dimensão que ele só encontra na festa.

Não é à toa que Chico Buarque, em uma gravação de uma música de Carlos Fernando, disse: De braços abertos, na noite, o Cristo Redentor abraça a cidade dizendo: Sou eu o seu amor. Da mesma forma, Caetano Veloso também deixou bem claro: Quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor? E todos nós o seguiremos para onde ele apontar. Simplesmente porque ele é rei do delírio e da fantasia e se tornou o grande responsável pelo luxo e pelo lixo de todas as gerações. Joãosinho Trinta é o Brasil em sua essência!

Já que a sabedoria popular diz que imagens falam mais que mil palavras, postei ineditamente todo o desfile oficial da Beija-Flor de 1989 no Youtube, comentado por Paulinho da Viola e Lena Frias, entre outros:

Parte 1:

O desfile foi dividido em oito partes. As outras sete podem ser facilmente encontradas nos videos relacionados da primeira. Confira, também:

Joãosinho em entrevista minutos antes do desfile oficial e o Cristo Mendigo sendo descoberto em meio ao Desfile das Campeãs:

Sobre o Artilheiro Colaborador

Gabriel Deslandes, morador da Região Serrana do Rio e estudante da 3ª série do Ensino Médio, é um admirador dos gêneros musicais brasileiros, em especial o samba e o choro. Violonista e cavaquinista, começou a se interessar pela cultura popular graças às letras dos grandes sambas-enredo e, hoje, escreve ocasionalmente artigos para o site Sambario. Tem interesses centralizados na preservação da música popular brasileira e, principalmente, pelo resgate da verdadeira poesia dos subúrbios, oriunda dos ditos excluídos. Apesar de todas as inversões de valores, acredita seriamente que, em um país tão carente de leitores, as escolas de samba possuem um papel histórico irrepreensível de divulgação da literatura nas camadas mais baixas da sociedade.

5 Respostas

  1. Me senti aquele sujeito que vive em apartamento e quer obrigar que os pobres sejam “pobres autênticos”, gostando de coisas simples pra nós batermos palmas e acharmos bonitinho. Este texto me transformou, como há tempos um texto não me transformava.

    Como até 10 minutos atrás eu era esse sujeito descrito acima, sempre olhei com certo desdém pros desfiles carnavalescos. “Coisa brega. Legal era no tempo do Cartola”, dizia. Não sei se me manterei transformado daqui pra frente, mas vou olhar com mais atenção ao carnaval de avenida.

    E, outra coisa: que texto bem escrito!

  2. Engraçado, eu tinha um ano e alguns meses quando isso aconteceu, pode parecer mentira, mais de alguma coisa eu lembro e com o passar dos anos as coisas foram ficando mais claras, a repercurssão desse Cristo, da frase escrita nele, do lixo tranformado em luxo e vice-versa!
    Pela Beija-Flor não tenho lá uma simpatia, tenho pelo carnaval, por essa festa do “povo” que vivo o ano todo, tenho por Joãosinho 30 que revolucionou esse “mundo” e que sempre será lembrado como um Mestre!

    Parabéns!

  3. Um dos melhores textos que já li. Sem sombra de dúvidas, sensacional.

    Meus parabéns e admiração! =)

  4. Achei fantástica a descriçao! Parabéns! Amo o carnaval, mas moro há tanto tempo fora do Brasil que nao conhecia essa história. Obrigada por trazer ao meu conhecimento.

  5. ADOREI SEU TEXTO, MAIS EMOCIONANTE QUE ELE SOMENTE O PRÓPRIO DESFILE E O COMENTÁRIO DO PAMPLONA!

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